A possibilidade de a Procuradoria-Geral da República (PGR) ser conduzida por um interino, em decorrência da indefinição do presidente Jair Bolsonaro sobre o novo ocupante do cargo, instaurou um clima de preocupação no Ministério Público Federal (MPF). A probabilidade, confirmada por pessoas próximas do chefe do Executivo federal, é classificada entre os procuradores como tão ruim quanto a escolha de um integrante com pouca liderança e articulação entre os pares.

O impasse deve alçar ao cargo máximo da PGR, como interino, o subprocurador-geral Alcides Martins, a partir de 18 de setembro. A expectativa no MPF, e até entre aliados mais próximos de Bolsonaro, era de que ele definisse o sucessor da atual procuradora-geral, Raquel Dodge, até o último dia dela na função, em 17 de setembro. No entanto, é possível que a indicação de um nome, a ser sabatinado no Senado, seja adiada indefinidamente.

A possibilidade abriria um capítulo inédito na história da PGR, e temerário. Não por falta de apoio a Alcides Martins — que desfruta de prestígio e, no início de agosto, foi eleito vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) —, mas pela insegurança jurídica, administrativa e funcional que deve causar. Uma normativa estabelece que o vice-presidente atuará no lugar do presidente do Conselho, ou seja, o procurador-geral, apenas em casos de impedimentos e vacância. Ou seja, a interinidade se dá enquanto o indicado aguarda o cumprimento do caminho constitucional: a sugestão do nome ao Senado, a sabatina, e a aprovação.

“Nós, do CSMPF, não temos nada contra o dr. Alcides. Votamos lá. Agora, o vice do Conselho é para ocupar a Presidência em casos de vacância, doença, ou falecimento eventual. Então, essa interinidade, sem a indicação, pode ser, inclusive, classificada de inconstitucional”, alertou a subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, segunda mais votada na lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

O interino, reforça Frischeisen, não tem o cargo efetivo de procurador-geral, de dois anos, “que deve ser sabatinado”. “Como vamos deixar um procurador-geral interino sem outros indicados, sem a sabatina, sem a aprovação (no Senado) e sem o mandato? Isso não é correto. Não me parece que essa possibilidade é possível do ponto de vista constitucional e legal”, ponderou. Bolsonaro pode optar por Martins na PGR, mas ele tem de indicá-lo para que passe por todo o rito estabelecido.

Conselheiro

No Planalto, a leitura de inconstitucionalidade em relação à escolha deliberada de Martins como o sucessor de Dodge é minimizada. “Eu não li em lugar algum que o presidente é obrigado a indicar (o nome) antes do término do prazo. Nem na lei complementar do Ministério Público. De repente, estou enganado, mas não li em lugar nenhum”, frisou o ministro-chefe da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, nesta quinta-feira (29/8), após cerimônia de lançamento de um projeto de combate à criminalidade.

O ministro, que também ocupa a subchefia de Assuntos Jurídicos da Presidência da República, é um dos principais conselheiros de Bolsonaro. Tem, inclusive, auxiliado o presidente em entrevistas de indicados à PGR. Oliveira destacou que o chefe do Planalto avalia todos os nomes apresentados a ele. “O tempo de decisão é do presidente. A escolha é dele diante das informações que tem. Em não havendo essa informação em tempo hábil, quer seja para que se normalize, ou mesmo até o término do mandato, há uma previsão expressa de quem conduz na interinidade. Hoje, seria o dr. Alcides”, sustentou.

A pretensão de Bolsonaro não foi bem-vista por membros do MPF. Integrante do Conselho Superior do órgão, o subprocurador-geral da República, Nicolao Dino, comentou que “uma eventual interinidade, de caráter indefinido ou permanente, frustra o complexo sistema de formação de vontades na escolha do PGR”. “Um PGR ‘biônico’ não cabe no figurino constitucional, que prevê indicação do presidente da República e aprovação pelo Senado”, afirmou.

Para Dino, seria recomendável que Bolsonaro priorizasse a lista tríplice formulada pela ANPR, mesmo que não seja obrigado a indicar algum dos três nomes do documento. Neste ano, além de Luiza Frischeisen, estão na relação o subprocurador-geral da República Mário Bonsaglia e o procurador regional da República Blal Dalloul.

“Embora não haja previsão constitucional, a lista se tornou um costume. Ela vem sendo observada desde a indicação do Cláudio Fonteles (PGR indicado por Lula em 2003). Seria extremamente significativa a observância da lista, mantendo-se o costume constitucional já introduzido”, opinou Dino.

O pensamento é compartilhado por analistas jurídicos. Professor da Faculdade de Direito da UnB, Alexandre Bernardino classificou a decisão de Bolsonaro como “completamente inusitada” e que “deslegitima a escolha de um procurador-geral da República”. “Foi criada uma tradição, a partir da escolha dos últimos PGRs, de se optar pelos nomes selecionados para integrar a lista tríplice, pois ela tem legitimidade junto aos procuradores”, explicou.

Bernardino alertou que a decisão de Bolsonaro pode afetar a independência do MPF. “O processo federal deve ser independente. É importante que tenhamos uma instituição sólida na democracia brasileira e que a Presidência da República não interfira nisso. A sociedade deseja uma atuação do MPF isenta e imparcial, e a Constituição propugna para que ele haja dessa forma”, explicou.

Para a advogada constitucionalista Vera Chemin, Bolsonaro não está de todo errado. “Talvez, o presidente esteja em dúvida de quem vai colocar e é provável que queira testar alguém que realmente coaduna com aquilo que ele espera de um PGR”, disse. Chemin reconheceu, porém, “que seria um desrespeito à instituição do MPF não escolher um dos três nomes da lista tríplice”.